José António Oliveira trabalha nas reservas do Centro de Arte Moderna, da Gulbenkian. À hora do almoço ou no fim-de-semana aproveita para contemplar as obras. ?Uns vão à missa, eu venho para aqui reflectir?
Antes de abrir a porta, um aviso. "É normal sentir-se indisposto. Há quem não aguente muito tempo na sala seca. É só sair e esperar uns minutos que recupera", explica o conservador do Museu Nacional de Arqueologia, Mathias Tissot, com a mão no puxador da segunda porta que nos leva à tão falada sala.
As paredes grossas, a porta blindada e a falta de janelas, fazem do antigo cofre de Salazar um local perfeito para criar um ambiente com 27% de humidade. A climatização improvisada, com dois desumidificadores, é a forma ideal para conservar metais, como o ferro ou o cobre. "São peças muito vulneráveis e entram facilmente em corrosão", diz ao i.
Estes são alguns dos objectos que estão afastados do olhar do público há décadas. Aliás, os museus têm a maior parte das suas colecções em reservas. O Museu Hermitage, em São Petersburgo, por exemplo, tem três milhões de objectos guardados.
Uma das razões é a óbvia falta de espaço para ter tudo em exposição, mas as peças de arte e obras históricas não resistem à constante investida de turistas e às luzes dos expositores. "Até o ouro fica desgastado. Temos peças da Idade do Bronze (2000-1700 a.C.) que têm estado sempre expostas e estão a ficar avermelhadas. Estão em vitrinas, a temperatura está controlada, mas mesmo o ouro altera-se", explica o director do Museu Nacional de Arqueologia, Luís Raposo.
Não é de estranhar que a sala seca tenha prateleiras até ao tecto. Em cada uma das caixas, devidamente numeradas e catalogadas, encontramos tesouros. Basta abrir uma ao calhas para darmos de caras com uma espada da Idade do Bronze ou com a Tábua de Vipasca, encontrada em Aljustrel, que contém um dos mais importantes fragmentos de legislação mineira romana recolhidos em toda a Europa. Ao fundo da sala está o cofre, com as peças de joalharia. Este, nem os jornalistas podem espreitar.
Ânforas e esqueletos O Museu Nacional de Arqueologia (MNA) tem cerca de 12 reservas, entre elas, a geral que é a maior, a sala seca, a reserva de ânforas ou mesmo uma antropológica, ou seja, de esqueletos. O esqueleto de uma mulher visigoda esteve há pouco tempo em exposição. Está tão bem conservado que é possível reconhecer-lhe todos os dentes e um anel no dedo.
Dos sete mil metros de área, apenas três mil são para exposições, o resto está repleto de estátuas e cacos. Muitos cacos. "Quantas peças temos? Sabe, sem querer ser ofensivo, essa é uma pergunta um pouco infantil. É que num museu como o nosso, a maior estação arqueológica do país, não é possível saber o número certo. Cerca de 70% das colecções do museu continuam inéditas", diz o director Luís Raposo.
O que à primeira vista pode chocar é facilmente compreendido. Primeiro, porque num museu de arqueologia qualquer fragmento de tecido, caco de cerâmica ou pedrinha é um objecto histórico. Segundo, o território português é ocupado há muitos milhares de anos e, como se costuma dizer, sempre que se faz um prédio em Lisboa, descobre-se mais uma estação arqueológica. Mas o actual director acrescenta outra explicação. "O fundador do museu, o Dr. Leite Vasconcelos, fez um contrato com a CP, no final do século XIX. Qualquer pessoa que encontrasse uma peça arqueológica podia mandá-la de comboio para Lisboa, sem ter de pagar o transporte."
Os números disponíveis apontam para a existência de 80 mil a 100 mil peças estudadas no museu e 60 mil inventariadas. O que encontrámos nas reservas foi um cenário bem diferente do que o secretário de Estado da Cultura contou em Abril. "Ele não conhece as reservas do MNA, mas respondendo a um deputado disse que estava tudo muito mal organizado e que havia peças embrulhadas em jornais dos anos 30. Isso não é verdade, as nossas reservas são até um case study", diz o director, Luís Raposo.
Numa área do auditório, mesmo ao lado da exposição, há uma parede falsa, com acesso à reserva geral. Quando entramos, deparamo-nos com uma imagem estranha. No meio dos claustros dos Jerónimos está uma estrutura de metal azul, de dois andares, que não está presa a nenhuma das paredes. No andar de baixo estão as estátuas de maior porte e nos dois andares encontramos vasos, cântaros e a primeira escultura portuguesa. "É um dos 940 tesouros nacionais do nosso museu. Foi encontrada em Aronches e é a primeira tridimensional, vemos um nariz, dois olhos e cabelo. Já esteve muitas vezes em exposição. Agora está em repouso."
Quadros às escuras José António Oliveira nunca toca num quadro ou desenho sem ter as suas luvas de borracha. E mesmo as luvas têm prazo de validade. "Com o tempo deixam passar resíduos", explica. E tal como um enfermeiro que visita os pacientes, ele nunca falta à ronda pelas obras do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (CAM), da Fundação Calouste Gulbenkian. José António de Oliveira é um dos quatro responsáveis pela reserva que tem a maior parte das 10 mil obras do CAM. Na cave do museu encontramos uma reserva impressionante, tão limpa e organizada que passaria no teste do algodão.
Dois desumidificadores estão no meio da sala dos desenhos e esculturas, sempre a 25 graus, mas José apressa-se a explicar. "Estou a fazer uma experiência. Como temos um belíssimo sistema de ar condicionado, se tirar aquilo não vai ter água nenhuma, vai ver."
Um passeio pela zona das esculturas e vemos enjaulada numa montra de vidro uma boneca de pano. "É uma das primeiras obras da Paula Rego. Está selada porque se trata de tecido que ficaria cheio de pó", explica directora do CAM, Isabel Carlos. De que ano? "Anos 70", responde rapidamente José António que na hora do almoço e aos fins-de-semana gosta de ir trabalhar. "Há quem vá à missa, eu venho ver os quadros e reflectir."
No -2, há outra sala que é guardada para o final da visita do i. A intenção é clara: impressionar. José António destranca a pesada porta e entramos numa sala repleta de expositores deslizantes, às escuras. Os quadros estão pendurados para não empenarem e só se acendem as luzes de cada sector. Não se quer incomodar o Almada Negreiros ou o Amadeo de Souza Cardoso. É lá que vemos o quadro por que todos perguntam: o retrato de Fernando Pessoa. "Há peças que não podem vir para a reserva, já as tentámos rodar, mas é muito difícil tirar "Os Galgos" do Amadeo. Este ano arriscámos e tirámos o Fernando Pessoa, do Almada, mas as pessoas perguntam. Há esta ligação afectiva com as obras, é como ver um amigo", diz a directora do CAM. José António está atento à conversa e não precisa de utilizar o computador, onde estão catalogadas todas as obras, para encontrar o tão falado quadro.
As trombetas de D. José Quando se pensa na reserva do Museu dos Coches, imaginamos um armazém enorme com rodas, cadeiras e arreios. Não foi bem isso que encontrámos. Como nos explicou a conservadora Maria Ana Bobone, os coches estão todos em exposição. Até quando precisaram de ser reparados, o restauro foi feito na área aberta ao público, para que toda a gente pudesse ver. "São demasiado grandes para estarem aqui. Na sala da reserva temos peças mais pequenas, como as trombetas, selas, arreios e a maior parte do fardamento. Temos oito mil peças no museu e apenas 200 estão em exposição", diz Maria Ana Bobone. Nos armários de madeira até ao tecto, há um que se destaca. O número 16 é o que tem as peças mais valiosas, como as trombetas em prata, e está trancado a cadeado. "O rei D. José encomendou 22 para tocarem na inauguração da sua estátua no Terreiro do Paço. Além de serem valiosas, porque são de prata, ainda tocam, o que é único em todo o mundo", explica.
A reserva é pequena e a manutenção sazonal é feita lá dentro. Quando muda a estação limpa-se tudo, mas os cabedais e tecidos são vistoriados com regularidade. No fundo da sala há uma mesa de costura, onde são reparados os tecidos centenários. A reserva recebeu nestes dias uma nova inquilina: uma cadeira do século XVIII que precisa de cuidados especiais. Tem dois rasgões - algum visitante mais curioso a provar que nem todas as peças podem estar expostas. Pelo menos o ano inteiro. Até as peças precisam de descanso.